Somos Nós: Filipa Vicente

Na sexta-feira, 13 de março de 2020, refugiei-me na minha casa com os meus dois filhos e a solidão do meu companheiro. Fechei-me como se fugisse do maior perigo, do maior alarme. Naquele dia senti que perdia pessoas que amo muito, com as quais trabalho diariamente, não sabia quando iria voltar, se voltava e em que condições. Como rumo segui a construção de uma casa segura, aberta a dias de brincadeira, de sorrisos, de sons, de alimentos. Ficar contente a ver os meus filhos unirem cumplicidades, ouvir a minha filha a dizer as suas primeiras frases, as suas primeiras perguntas, ouvir os dois a rir. Raras vezes os senti angustiados. Muitas vezes me interroguei sobre tudo e todos. Como estariam os que deixei, os que amo? Bem? 

Na manhã do dia 22 de abril, dia do meu aniversário, recebi a notícia da morte de uma mulher que amo muito, Hermínia, uma avó de coração. Sempre me abraçou, sempre aceitou e respeitou as minhas escolhas. Cresci com ela, na sombra do seu alpendre, a vê-la trabalhar a terra, a tratar dos seus coelhos, a acariciar os seus gatos. Foi com ela que aprendi o significado da palavra respeito, da palavra coragem, da palavra dádiva.

Nada mais pude ver, só um carro funerário com a fotografia dela. Não a abracei. Despedi-me sozinha, sem falar, como se aquela morte não fosse uma morte, fosse um desaparecimento. Vi a solidão da sua filha, vi o silêncio. Tocar na pele do outro, sentir o abraço daquele que vive o mesmo é essencial. É nesse toque, nesse cheiro que nos recuperamos, que seguimos em frente. Que aceitamos. A frieza do termo, distanciamento social, quer-nos sós, a guardar numa gaveta interior sentimentos de partilha física, a imaginar.

Morreu a dormir, feliz, em casa, abraçada pela sua filha. 


Filipa Vicente

Professora de Pintura

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